ALDEIAS COMUNAIS: “VIVER COMO GENTE[1]

Autora: Arcélia Ngomane Mula

 No seu projecto de construção de nação e identidade nacional moçambicanas, a FRELIMO (convertida em partido de orientação Marxista-Leninista em 1977) adoptou a edificação das Aldeias Comunais como um dos eixos da estratégia socialista de desenvolvimento. Neste grande processo de colectivização e modernização do campo, perto de 80 % da população do país viu-se, de repente, do lado errado da história e a precisar de educação política e económica para melhor se beneficiar dos frutos da independência e abandonar as práticas culturais “atrasadas e ignorantes”.

 Objecto da Nota Informativa

O objecto desta Nota Informativa são as Aldeias Comunais, que foram uma das estratégias de Construção de Identidade e Estado-nação em Moçambique, após a independência em 1975, adoptadas pela FRELIMO como eixo do seu programa de desenvolvimento à modernização do meio e das pessoas rurais, integrada na proposta de formação do “Homem Novo”. O aldeamento rural constituiu um longo processo de alterações socioculturais, cujos efeitos ultrapassam, quer o período em que se registaram as inúmeras operações de implantação das aldeias, quer o âmbito restrito de transformação do habitat rural tido como “disperso” e não favorável ao desenvolvimento, por motivos também socioculturais como o tribalismo, ignorância e obscurantismo.

Definição do termo

A ideia da aglomeração e combate à dispersão através das Aldeias Comunais foi estratégia comum dos colonizadores e dos libertadores, tendo como pano de fundo a percepção de que os camponeses e as suas formas de ser e estar eram contrários aos projectos de construção do Estado Colonial e do Novo Estado Independente. Para os colonos portugueses, era uma estratégia para controlar melhor a população e as suas produções, implementada através da promessa de melhoramento de condições de vida: casas de alvenaria, hospitais e escolas. Mais tarde, no período pós-independência, o projecto socialista da FRELIMO continuou com a prática de reassentamento e agrupamento da população, com o intuito, desta vez, de implementar os ideais da criação do “Homem Novo”.

Entre 1975 e 1985, o aldeamento rural constituiu um longo processo de alterações socioculturais, cujos efeitos ultrapassam quer o período em que se registaram as inúmeras operações de implantação das aldeias quer o âmbito restrito de transformação do habitat “disperso” […], tal como se consideravam as formas de viver e estar da população moçambicana rural na altura.  Como conhecimento sociopolítico, “as aldeias comunais pertencem ao passado, mas, como objecto de análise, sobre uma experiência de desenvolvimento, mantêm-se como referência na teoria e prática do desenvolvimento rural em Moçambique” (Casal, 1996:3).

Aldeias comunais: espaços de transformação social, não de opressão!

“A falta de compreensão do que são as aldeias comunais e o que se pretende com elas faz com que muita gente, sobretudo da Pequena Burguesia, tome as aldeias como centros de reeducação” (Revista Tempo, N. 359, 1977:46).

No período pós-independência, as aldeias comunais seriam o locus da transformação do homem novo moçambicano que, para ser produtivo e organizado, não deveria viver disperso nos matos. Em princípio, quem vive na aldeia comunal são os camponeses, na medida em que ela é o centro político, económico e cultural por excelência (Revista Tempo, 1977).

Assim como os aldeamentos coloniais, as zonas libertadas também eram propagandeadas como um local seguro e buscavam atrair a população para um dos lados da guerra. A propaganda política abaixo, produzida pela FRELIMO, ilustra, de maneira primorosa, a aglomeração populacional como elemento catalisador na disputa entre nacionalistas e colonizadores.

“As políticas económicas introduzidas pelo governo de Moçambique depois da independência (1975) visavam transformar as relações sociais de produção e tornar Moçambique independente do sistema mundial capitalista. A estratégia consistia em construir um sistema socialista onde a cooperativização da produção da agricultura familiar camponesa, o reassentamento das populações em aldeias comunais e o investimento no sector estatal de produção seriam os grandes motores da transformação” (O’Laughlin, 1981; Coelho, 1998; Francisco, 2003).

As medidas económicas preconizadas pelo Estado Pós-colonial mostraram, no entanto, serem as menos adequadas e acabaram por marginalizar os camponeses familiares, a favor do desenvolvimento de uma agricultura mecanizada, destruindo, assim, o sistema que havia garantido a produção para o abastecimento do mercado interno e para a exportação.

Marcar a diferença entre as Aldeias Comunais e os Campos de Reeducação foi uma preocupação da liderança da FRELIMO na altura. Assim, “[…] com as Aldeias Comunais, pretende-se valorizar o trabalho colectivo, pretende-se contar com as próprias forças e o camponês, analfabeto, supersticioso, reencontrar a sua dignidade negada pela sociedade feudal e, posteriormente, pela sociedade colonial” (Revista Tempo, 1977). A fonte ainda acrescenta que, a falta de compreensão do que são as aldeias comunais e o que se pretende com elas fazem com que muita gente, sobretudo da Pequena Burguesia, tome as aldeias como centros de reeducação.

De certo modo, ficou dito atrás. Ali aprende-se a valorizar o trabalho colectivo. Aprende-se a contar com as próprias forças e o camponês – analfabeto, supersticioso – reencontra a sua dignidade negada pela sociedade feudal e, posteriormente, pela sociedade colonial. Sabe e sente que tem cabeça, tronco e membros. Sabe o que fazer com a cabeça e aprende a fazê-lo correctamente. Sabe o que fazer com o tronco e com os membros e fá-lo cada vez melhor. (Revista Tempo, N. 359:46)

É importante frisar que algumas disposições infelizes no desenho das Aldeias Comunais levam a essa impressão de Campos de Reeducação. Por exemplo, ao se enumerarem as condições de ordenamento territorial duma aldeia comunal, o ordenador foi peremptório ao afirmar que essa deveria ter somente uma estrada que a ligasse a uma estrada principal, que devia ser a única que ligasse a aldeia ao resto do mundo.

“Uma aldeia tem que estar afastada das estradas principais, mas estar ligada a elas por uma picada, chamada de via de escoamento. Quando as aldeias estiverem muito avançadas, esta via de escoamento será a única volta delas que permitirá circulação automóvel[2] (Revista Tempo, No. 359:44).

Nem sempre os alvos dos aldeamentos eram “o camponês, analfabeto, supersticioso”, cuja “dignidade” havia sido negada pela “sociedade feudal” (um momento histórico que não existiu em Moçambique) e pela “sociedade colonial”. Muitos que foram aos aldeamentos foram pequenos agricultores que exerciam a agricultura comercial em moldes modernos.

Tal como afirma Oliveira (2018:29), o Estado não só assumiu a terra e os recursos dos antigos colonos e das empresas agrícolas de plantações, mas, também, frequentemente, confiscou terra pertencente a camponeses e produtores privados de pequena escala. Isto aconteceu com frequência em zonas em que as explorações de camponeses e privados estavam dispersas entre as grandes propriedades abandonadas pelos portugueses.

Por vezes, fenómenos naturais forneceram a fundamentação para esta acção. Por exemplo, “a seguir às cheias de 1977 no vale do Limpopo, o Governo fez deslocar os produtores camponeses e comerciais das suas terras e reinstalou-os em aldeias comunais. A terra abandonada foi absorvida pelas empresas estatais, criando assim urna maior escassez de terra para os camponeses” (Myers, 1996:39 apud Oliveira, 2018:29).

Pela sua concepção e implementação, as Aldeias Comunais não podem, de forma alguma, ser designadas por locais onde os moçambicanos aumentaram a sua capacidade de exercer a cidadania pós-colonial. Foram mais locais de emancipação de pessoas consideradas “ignorantes e supersticiosas”, de uma forma de vida para outra, mas não se pode dizer, como se vê pela explicação oficial do programa, que tenha sido a realização do sonho dos 80% dos moçambicanos rurais da altura.

 O debate colonial sobre os “aldeamentos”

Na era colonial, a criação de Aldeias Comunais foi vista como um combate à dispersão significava e, ao mesmo tempo, trazia a possibilidade de transformar “os usos e costumes” dos “incultos indígenas” e controlar o seu trabalho, garantindo tanto a matéria-prima para o mercado europeu quanto o pagamento dos impostos resultantes da venda dos excedentes e das actividades laborais nos territórios vizinhos.

Esse conjunto de acções moralizantes e lucrativas ajudou a legitimar, ao menos no campo das ideias, a continuidade da empreitada colonial portuguesa nos territórios ocupados. Mas, a população local criava estratégias como ocupar as aldeias apenas no momento de pressão colonial, abandonando-as em seguida. Como veremos, a mesma situação verifica-se nos aldeamentos coloniais edificados a partir da década de 1960 e, também, nas aldeias comunais consideradas a coluna vertebral do socialismo moçambicano (Gallo, 2016).

O debate colonial descrito por Gallo (2016) em torno dos aldeamentos resultou na aplicação do ruralato em Moçambique, cujo projecto foi apresentado em 1944, pelo Inspector Franco Rodrigues, após uma pesquisa de campo na Zambézia. O ruralato foi um meio termo entre a ocupação dispersa e a concentração em aldeias, já que preservaria a unidade espacial entre residência e produção e consistia na distribuição de 2 (dois) a 8 (oito) hectares, num local determinado pela administração, onde as populações seriam convencidas a permanecer e plantar aquilo que fosse igualmente determinado.

O primeiro passo para controlar a dispersão seria, portanto, transformar a agricultura itinerante com a fixação das famílias. O ruralato fez-se presente em vários distritos no norte de Moçambique, na década de 1940 e início de 1950, sobretudo em áreas de produção de algodão, subtraindo, cada vez mais, terras e tempo dedicados à produção de alimentos para as próprias populações.

Gallo (2016), analisando as fontes documentais da administração colonial (sobretudo o Fundo de Tete e o Serviço de Centralização e Coordenação da Informação de Moçambique) e da administração pós-colonial (especialmente a Comissão Nacional das Aldeias Comunais), constata que a dispersão é apresentada como impedimento do progresso, da evolução e do desenvolvimento, termos reiteradamente utilizados no período tardo colonial, socialista e no actual desenvolvimentista. Em suma, a aglomeração de pessoas foi sendo delineada como um pré-requisito para viver adequadamente ou viver como gente.

Os aldeamentos na projecção colonial eram propagandeados como um local ideal para viver como gente[3], tinham um perfil extremamente militarizado, que se fazia notar, entre outros, nos arames farpados e nas minas terrestres que “protegiam” os aldeados, nas torres de vigilância e na acção de diferentes forças como polícias do distrito, tropas do exército e milícias comandados pela Organização de Voluntários (OPV) que agiam a nível interno dos aldeamentos. Todos os que viviam nos aldeamentos deveriam ser registados pela administração local e portar cartões de identidade.

O carácter conjuntural das Aldeias Comunais

A criação de aglomerados populacionais sob forma de Aldeias Comunais tanto de forma compulsiva como cooperativa parece ter sido a única estratégia política de lidar com o meio rural em Moçambique, tanto por parte do governo colonial português como por parte do governo de Moçambique independente. O elemento político de controle do poder e de eliminação de lideranças ligadas a espaços alternativos de poder foi assim um aspecto que data dos inícios da implementação do projecto das Aldeias Comunais. Noutros momentos, estas surgiram pelo excesso de zelo das lideranças políticas locais. Noutras instâncias, foram o resultado de esforços de reordenamento territorial como consequência de calamidades naturais.

Apesar da referência à necessidade de organizar a população em formas colectivas de vida e de produção já ter sido implementada nas zonas libertadas, ela aparece como parte da estratégia do partido para conduzir o desenvolvimento rural moçambicano, nos dois principais encontros realizados pelo partido antes da proclamação da independência. O primeiro foi realizado em Mocuba, província da Zambézia, em fevereiro de 1975 e, o segundo, em Marrupa, província de Niassa, entre os dias 29 de maio e 4 de junho.

Nas conclusões desses encontros, como refere Serra (1991), é abordada, mais explicitamente, a necessidade de aglomerar a população dispersa, como forma de ter acesso aos serviços de educação, saúde, abastecimento de água e luz, comunicações e outros. Isso, pelo facto de tornar-se quase impossível beneficiar toda a população com esses serviços, se continuassem a viver em povoações dispersas. Contudo, a experiência das zonas libertadas também evidenciou as disputas de poder ali estabelecidas e que seriam replicadas a nível da nova nação.

Por um lado, os chefes tradicionais e membros de linhagens prestigiadas questionaram certas concepções como organização do trabalho, estratégia militar, participação das mulheres na luta e procuraram entender tais acções como, por exemplo, a deslegitimação de seus poderes tradicionalmente constituídos; por outro lado, os quadros da Frente (o poder tradicional) eram acusados de retrógrados, reticentes ao progresso e pouco afeito à noção de unidade.

Tal situação agudizou as tensões internas e resultou na expulsão do grupo considerado “regionalista” e “tribalista”, liderado por Lázaro Nkavandame. Após o II Congresso de 1968 e, sobretudo com a morte do presidente Eduardo Mondlane (1969), novos princípios ideológicos foram introduzidos nas zonas libertadas como a obrigatoriedade da produção e divisão colectiva. Neste modelo de socialismo de guerra, o trabalho e a produção foram definidos como um acto político-militar.

As aldeias formadas nas zonas libertadas, onde a socialização do campo, materializada nas aldeias comunais e nas formas colectivas de produção, foi a forma encontrada pelo governo da FRELIMO para a organização do espaço residencial e produtivo que respondesse aos interesses do partido e do governo. No terceiro ano da independência, já existiam em Moçambique 857 aldeias comunais, albergando 12% da população rural. Perto de 70% das aldeias comunais encontrava-se concentrada na província de Cabo Delgado, seguida das províncias de Nampula e Gaza, com 9% para cada uma.

A maior concentração de Aldeias Comunais na província de Cabo Delgado pode ser explicada por ser lá onde começaram a surgir as primeiras zonas libertadas. Niassa e Tete são, também, outras províncias em que se encontra, com exclusividade, esse tipo de Aldeia Comunal. Para os casos de Nampula e Gaza, a maior concentração de Aldeias Comunais carrega explicações diferentes.

Para a primeira, o surgimento está fortemente ligado à corrida para a concentração da população em Aldeias Comunais, resultante do encontro de Marrupa, que criou ambiente para os responsáveis provinciais e distritais entrarem em competição para a sua implementação (Araújo, 1989; Serra, 1991); enquanto, para a segunda, Gaza, constata-se que as inundações do rio Limpopo e Incomati aceleraram a criação de novas Aldeias Comunais, localizadas em áreas consideradas seguras em face de prováveis inundações (Hermele, 1986; Araújo, 1989).

 À guisa de considerações

 O agrupamento das populações em forma de aldeamentos foi uma estratégia política adoptada pelos colonizadores portugueses no período de luta de libertação nacional, com o objectivo de dominar e controlar a produção e explorar a mão-de-obra dos agricultores. O reassentamento foi elaborado nos termos de uma legislação, criados e orientados para responder a esta demanda, tal como o Boletim Geral das Colônias de 1941, especificamente no ponto onde discute sobre a  Organização social e económica das populações indígenas[4]. No período pós-independência, a mesma estratégia foi adoptada pelo partido FRELIMO, que viu uma oportunidade de legitimar o reordenamento territorial e controlar as populações.

As Aldeias Comunais trouxeram muita perda para a sociedade moçambicana, algumas das quais a identidade social, propiciada pelo sentimento de pertença de terra, foram retirados de lugares onde existe um todo de história, sentido de apropriação, levados para locais desconhecidos e, pela inibição das práticas culturais que as populações sofriam nas zonas de reassentamento, eram proibidos de praticar os seus rituais, tanto na zona controlada pelo colonizador quanto em zonas libertadas; perda de meios de subsistência, porque muitos foram arrancados as terras onde  cultivavam para o seu sustento.

Contudo, as  estratégias políticas, económicas e sociais  implementadas pela Frelimo no período pós-colonial, como o caso do “Homem Novo” que motivou a ideia da criação de Aldeias Comunais, que tiveram impacto negativo nos seus efeitos danosos, são verificadas até aos dias que correm.

Referências bibliográficas

ARAUJO, Manuel G. Mendes De.( 1998). NO sistema das aldeias comunais em Moçambique: transformações na organização do espaço residencial e produtivo.

Bolentim da República (1975) Constituição da República Popular de Moçambique. Disponível em: https://gazettes.africa/archive/mz/1975/mz-government-gazette-series-i-dated-1975-06-25-no-1.pdf

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CASAL, Adolfo Yanez. Antropologia e desenvolvimento: as aldeias comunais de Moçambique. 1996. p. 3.

FRANCISCO, Antônio Alberto (2003). Reestruturação econômica e desenvolvimento. In:
BOAVENTURA, de Sousa Santos; TRINDADE, João Carlos (Org.). Conflitos e
transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique. Porto: Edições
Afrontamentos.

GALLO, Bianca (2016).  Para poderes viver como gente” reflexões sobre o persistente combateEdição  25 / Jul-Dez, 2016

REVISTA TEMPO (1977) as aldeias comunais: o presente e o Futuro, edição n. 359.

Revista da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Geograia (Anpege).p.31-64, V.11, n.15, jan-jun.2015. (Destaque nosso) (Destaque nosso) (Destaque nosso) (Destaque nosso)

OLIVEIRA, Leandro Teles. (2018). Na República de Moçambique temos a lei, política de terras, sentidos da terra e conflito no litoral norte de Moçambique.

 

[1] Cf. Bianca, G. (2016)

[2] Dito de outro modo: um carro, para entrar numa aldeia, só terá uma e única saída.

[3]Cf. Bianca, G. (2016)

[4] Ora, das 168 páginas do citado Boletim, 112 delas são dedicadas ao assunto dos aldeamentos. Fonte:

PORTUGAL. Agência Geral das Colónias, Boletim Geral das Colónias, Processo de Consulta n° 37: Or-

Organização social e econômica das populações indígenas. Lisboa, Vol. XVII – 191, 1941, 168 págs.

Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGC-N191&p=88. Acessado em 25/05/2016.