O HOMEM NOVO: NOTAS CONCEPTUAIS E MEMÓRIAS SOBRE O PROJECTO IDENTITÁRIO DO MOÇAMBIQUE PÓS-INDEPENDENTE (1975 – 1990)

Autores: Pedro Manguene e Milissão Nuvunga

Homem novo, ser ou não ser? Eis a questão que determinou fortunas e desgraças na vida dos Moçambicanos. A ideia do Homem Novo e a sua estratégia de implementação constitui o elemento crucial da ligação entre a FRELIMO e os cidadãos no pós-independência, em termos de quem tem o direito de fazer parte do Estado em Moçambique. Essa ideia demonstra como conceitos científicos e ideológicos adquirem vida própria em termos operacionais e continuam a se manifestar em outros contextos, mesmo quando as condições objectivas por detrás da sua criação já desapareceram. No caso de Moçambique, parece que o Homem Novo transitou dum instrumento para garantir a rectidão ideológica do cidadão no novo Estado pós-colonial para um critério de controle de credenciais patrióticas num contexto de democracia multipartidária.

Objecto da Nota Informativa

Esta Nota Informativa aborda a figura do Homem Novo e o seu papel na definição dos critérios de cidadania no Moçambique independente. O Homem Novo foi o indicador material para identificar quem podia fazer parte do novo Estado, quem deveria ser perseguido e excluído, e quem tinha possibilidade de redenção (e os critérios dessa redenção política). Esta Nota mostra como conceitos e políticas a ele associados podem ser usados para justificar novas racionalidades e elites políticas no processo de construção do Estado.

Definição do termo

“Os discípulos de Cristo revestiram-se do homem novo, criado segundo Deus, na justiça e santidade da verdade” (Efésio 4:24). “Livres da mentira (Efésios 4:25), devem rejeitar toda a maldade, toda a mentira, todas as formas de hipocrisia, de inveja e maledicência” (1 Pedro 2:1) (CIC 2475).

“Na nossa sociedade, jogam um grande papel a juventude e o partido. A primeira é particularmente importante por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores. (…)

Nossa aspiração é que o partido seja de massas, mas quando as massas tenham atingido o nível de desenvolvimento da vanguarda, quer dizer, quando estejam educadas para o comunismo

A ideia do Homem Novo tem as suas origens em concepções religiosas e filosóficas que parte da premissa de que o processo de socialização pode, tal como o da conversão divina, levar a um outro tipo de Homem, e que o sistema educacional ao serviço de um projecto político de transformação social é um instrumento crucial para atingir isso: formar e moldar novos Homens. Estas concepções utópicas se tornaram mais concretas ao serem formuladas no âmbito de diferentes episódios de convulsão social, quando um novo grupo revolucionário tentou consolidar o seu poder destruindo a classe antiga e toda estrutura que suportava essa classe.

Do OK ao KO do Homem Novo: uma referência às origens, implementação e abandono do projecto identitário 

Historicamente, os revolucionários Moçambicanos foram buscar a ideia do Homem Novo como instrumento de engenharia social numa longa lista de revoluções: a francesa (1789), a russa (1917) e a chinesa (1949). Aquando da implementação do conceito em Moçambique, o mundo já havia experimentado os efeitos políticos e socioeconómicos da adopção da figura do homem novo. É nesse sentido que Cahen (1996: 22), salienta que esta experiência lembra o modelo de Nação-Estado de desenvolvimento, bem sucedido, em épocas e circunstâncias totalmente díspares, em certos espaços da Europa. E para essa ideia vingar noutros cantos do mundo, precisou de processos um pouco similares aos que aconteceram em Moçambique: por um lado a criação da geração 8 de Março que veio a dirigir as rédeas do Estado, e por outro o M´telela e Sacuzo para onde foram levados os identificados como contrários ao projecto educacional ligado ao Homem Novo – e que fornecem hoje as matérias-primas, simbólicas e ideológicas para a resistência nacional.

Parte-se do pressuposto de que a visão de construção do Homem Novo foi trazida das zonas libertadas, mas foi reajustada a uma nova realidade mais complexa que incluía o campo e a cidade. Para todos os casos, a FRELIMO, já nos últimos anos da Luta de Libertação Nacional, nas primeiras “Zonas Libertadas”, projectava uma sociedade que se distanciasse dos princípios inculcados pelo colonialismo português, durante o período de dominação colonial. A mesma sociedade que, conforme discursos governamentais da época, devia servir a determinados preceitos: erradicação do analfabetismo, promoção e desenvolvimento da cultura e personalidades nacionais por muito negligenciadas pela opressão colonial portuguesa. Assume-se que esta visão materializa as diretrizes do II Congresso da FRELIMO

O ideal da FRELIMO ganhou enquadramento jurídico com a primeira Constituição, com a independência de Moçambique. A Constituição da República Popular de Moçambique (1975) elucida esse novo perfil social: livre do obscurantismo, do regionalismo e do tribalismo. Os artigos 3º, 4º e 15º deste documento referiam-se particularmente sobre os princípios gerais da nova nação, ao focar-se nos aspectos que deveriam constituir o pilar de educação do Homem. Mais ainda, era o Estado o único orientador da sociedade, promotor do desenvolvimento da cultura e personalidades nacionais. É neste quadro jurídico que se projecta o “Homem Novo” como projecto identitário que pudesse moldar a nova sociedade moçambicana, sob pretexto de construção da Unidade Nacional.

A formação do Homem Novo consiste, segundo Samora Machel, na formação de uma nova mentalidade, pois não é somente ensinando a falar e escrever bem que conseguiríamos formar um outro Homem. Há que criar uma mentalidade nova”. Para isso, é imprescindível a educação. “Uma vez formada a nova mentalidade, sublinha Samora Machel, vão germinar novas idéias, que lutam “permanentemente contra as ideias velhas, contra os hábitos velhos (…) surge o combate para dinamizar e revigorar o novo. Novo com conteúdo revolucionário”. Daí se criaria o Homem novo, o Homem liberto das ideias velhas, da mentalidade adulterada pela ideologia colonial-capitalista e tribal-feudal, o Homem formado nas ideias e na prática do socialismo.

Entretanto, a concepção e debate sobre o “Homem Novo” é anterior à independência nacional, e começa a ser promulgada logo depois da ascensão ao poder da nova FRELIMO sem Eduardo Mondlane e Urías Simango. Em uma mensagem à II Conferência do Departamento de Educação e Cultura da FRELIMO, Samora Machel (1970) abordava a questão do “Homem Novo” como uma necessidade revolucionária, a fim de construir uma base ideológica no seio dos militantes da FRELIMO que lutavam pela causa nacional. Machel via neste projecto o primeiro passo para a construção de uma sociedade moçambicana “própria”. Viria Samora Machel a abordar a temática do “Homem Novo” mesmo nas vésperas da independência de Moçambique em 1974, com a obra “Fazer da escola uma base para o povo tomar o poder”. Por seu turno, Sérgio Vieira (1977), ideólogo e dirigente do então Partido-Estado em que se transformara a FRELIMO logo depois da independência, abordara o “Homem Novo” como uma identidade a qual os moçambicanos devem se identificar como revolucionários. Tanto para Machel (1970) quanto para Vieira (1977), embora em contextos históricos diferentes, o enfoque residia na necessidade da remodelação da sociedade moçambicana então colonizada e com uma identidade política e sócio-cultural degradada.

Como se pode depreender das colocações dos governantes, pretendia-se com o “Homem Novo” a revalorização do Homem moçambicano ao mesmo tempo em que urgia a necessidade de reorganização do tecido social “desestruturado” nos anos de dominação colonial portuguesa.

Alguns autores tentam remeter a ideia do Homem Novo à génese da FRELIMO, legitimando assim todo o conjunto de políticas internas e externas do partido no período pós-independência tanto para com os seus membros e em relação aos outros cidadãos. Autores como Miguel BuendiaGomez (1999), na obra “Educação moçambicana: História de um processo, 1962 – 1984” fazem este tipo de ilações. Nesta obra o autor apresenta documentos legislativos, administrativos e outros diversos que regulam os sistemas de ensino adoptados não só depois da independência nacional, mas também os da fase de luta de libertação nacional, e argumenta que os mesmos cruzam bastante com os preceitos de Eduardo Mondlane (1995) e as linhas orientadoras da Constituição de 1975.

José Luís Cabaço (2010), em “Moçambique: Identidades, Colonialismo e Libertação”, entende o “Homem Novo” como proposta identitária da FRELIMO, oposta não somente ao Homem de cariz colonialista, mas igualmente o Homem tradicionalista. Para o autor, o novo Homem seria o projectado ao longo dos 10 anos de luta de libertação nacional, fortemente ensaiado nas primeiras “zonas libertadas” do país que antecederam ao período da independência. Na mesma onda encontramos autores como Zawangone (2017) em “A FRELIMO e a formação do Homem Novo: 1962 – 1974 e 1975 – 1982“, e Brazão Mazula (1995) em “Educação, Cultura e Ideologia em Moçambique: 1975 – 1985” ligam a ideia do Homem Novo à origem da FRELIMO. O que esses autores parecem confundir é a identificação do problema da diversidade social e política em Moçambique feita por Mondlane e outros líderes da FRELIMO na década de 1960 com a solução encontrada pela nova liderança da FRELIMO nos anos 1970 para abordar o problema da diversidade social Moçambique pós-colonial.

Chichava (2008) em “Por Uma Leitura Sócio-Histórica da Etnicidade em Moçambique” já aborda os impactos desta política em todos aqueles que se encontravam do lado de fora da sociedade idealizada no conceito do Homem Novo. Este retrata o impacto deste projecto sócio-político no tecido sócio-cultural moçambicano pós-independente, ao apresentar sobretudo as perseguições ou limitações de práticas culturais dos diferentes grupos étnicos moçambicanos, alegadamente comprometedoras da “Unidade Nacional”. A tónica dominante é de que este projecto identitário foi imposto inspirado na concepção marxista-leninista do Estado, ignorando aquela que era a realidade sócio-cultural moçambicana, muito além do projecto Estado-nação herdado das fronteiras do Moçambique colonial.

Ligação com a realidade actual

Diferentemente da versão religiosa ligada a interpretações moderadas do Cristianismo e do Iluminismo Europeu, o Homem Novo na sua versão marxista-leninista foi um projecto de transformação social direccionada a destruir relações sociais e excluir indivíduos que eram identificados como inimigos do projecto. O projecto Homem Novo, para além de implicar a destruição do “velho”, teve impactos sobre as figuras que tinham uma visão liberal e democrática do Estado.

O Homem Novo, teve uma dimensão dupla, por um lado serviu à construção de uma sociedade unitarista, e, por outro para justificar a negação da diferença num contexto em que a prioridade era a de construir-se a nação segundo a percepção da elite do partido que governava o Estado. Nesta premissa, o Homem Novo, assumiu-se como um projecto de igualdade e fraternidade entre os moçambicanos, mas também de negação total aos que pensavam diferente.

O Homem Novo é um dos maiores sucessos políticos do projecto da FRELIMO Marxista-Leninista do pós-independência, por ser um dos poucos que saiu da ideia à prática, tendo se tornado um conceito operacional que até hoje fornece os critérios de adesão de cidadãos ao Estado. Se no início usava-se o facto de alguém não ter estado na luta armada e nas muitas zonas libertadas da FRELIMO para marginalizar e expulsar cidadãos do aparelho do Estado, hoje usam-se os indicadores ligados ao Homem Novo para impedir a entrada no aparelho do Estado de pessoas que não tenham sido forjadas nas células do Partido FRELIMO. Houve uma transição de expulsão para exclusão no uso do conceito.

O debate sobre o projecto do Homem Novo, mostra-se pertinente nos dias de hoje porque nos ajuda a compreender os discursos presentes na esfera política sobre a participação dos diferentes grupos (étnicos e tribais) no processo da construção do Estado em Moçambique. E elementos como tribo, nação, regionalismo são empregues para aproximar ou distanciar, incluir ou excluir, considerar ou desconsiderar a opinião e percepção política dos diferentes segmentos da sociedade, tal como acontecia no período da implementação do projecto do Homem Novo.

 

Referências Bibliográficas   

CAHEN, Michael. “O Estado, Etnicidades e a Transição Política”. Magode, José (Ed). Etnicidades, Nacionalismo e o Estado: Transição Inacabada. Maputo: Centro de Estudos Estratégicos Internacionais, 1996.

CHICHAVA, Sérgio. Por Uma Leitura Sócio-Histórica da Etnicidade em Moçambique. Maputo: Colecção de Discussion Papers do IESE, 2008

CABAÇO, José Luís. O Homem Novo: Breve Itinerário de um Projecto. In Sopa, António, ed. Samora. Homem do povo. Maputo: Maguezo Editores; 2001; pp. 137-146

GÓMEZ, Miguel B. “Educação moçambicana: História de um processo, 1962 – 1984”. Maputo: Livraria Universitária da UEM, 1999. 426 p

VIEGAS, Mário. “Para quê ainda Filosofia: (Do K.O. à Filosofia ao O.K. da Filosofia;  um novo K.O.?)” In Revista Síntese (11ª edição), UP, 2016, 146p.

VIEIRA, Sérgio. The New Man is a process. Speech by Sérgio Vieira to the Second Conference of the Ministry of Education and Culture, held in December 1977.

MARIANI, Bethania. Discurso revolucionário moçambicano e a escrita do homem novo. Via Atlântica (São Paulo), 21, Julho 2012 p.59-74

MAZULA, Brazão. Educação, Cultura e Ideologia em Moçambique: 1975 – 1985. Maputo (1995)

ZAWANGONE, S. “A FRELIMO e a formação do Homem Novo: 1962 – 1974 e 1975 – 1982” Maputo, 2017

 

FIM