O XICONHOCA E AS SUAS METAMORFOSES NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO ESTADO MOÇAMBICANO

Autor: Jaime Newton Z. Gode

 

A invenção da figura de Xiconhoca pela Frelimo, figura que carrega uma variedade de hábitos e costumes, como a corrupção, tribalismo, espionagem, individualismo, entre outros elementos a serem eliminados (nos campos de reeducação), fez parte dum conjunto de medidas que tinham como finalidade a construção de uma identidade nacional, nova (homem novo) e distante de todas das práticas coloniais. O conceito é flexível e permissível a uma operacionalização contextual, o que permite ao Xiconhoca ser um corrupto, tribalista, bêbado, prostituto(a), individualista, espião, desempregado, preguiçoso, entre outros elementos. Ao mesmo tempo, numa reviravolta história, hoje a Frelimo é atacada por incorporar tudo aquilo que dizia ser errado na figura do Xiconhoca.

 

Objeto da Nota Informativa

Esta Nota Informativa aborda a figura do Xiconhoca e a forma como ela assume uma variedade de formas, tal como parasita, improdutivo, tribal, corrupto, prostituto, racista, espião, curtidor, bêbado (dado ao vinho), contra os direitos e emancipação da mulher e reacionário e/ou opositor político. Estas transformações estiveram sempre ligadas aos esforços da liderança da Frelimo de se implantar como o único marco moral e social do novo Estado pós-colonial. Esta Nota mostra como esta figura hoje se tornou no critério mais marcante da governação da Frelimo aos olhos da sociedade, depois de ter há tempos atrás sido aquilo que este a Frelimo mais afirmou querer combater no seio da sociedade no pós-independência.

 

Definição do termo

A figura do Xiconhoca é igualmente descrita por Menezes (2015: 31), como sendo uma criação do Departamento de Informação e Propaganda da Frelimo, mas que simboliza o arquétipo do moçambicano imoral e corrupto. Esta figura, que rapidamente se popularizou, representava “todos estes males deixados pelo colonialismo, e que o Povo moçambicano está a combater”. No contexto pós-colonial, e sob a liderança de Samora Machel[1], o país adoptou uma postura nacionalista e socialista ao extremo, que se confundiu com autoritarismo, devido à dificuldade de aceitar quem pensasse diferente (CEPCB, 2022: 1).As resistências ao projecto político da revolução popular avolumam‑se, ecoando, nos mídia oficiais, associadas a uma figura que materializava em si todos os aspectos negativos que desafiavam os projectos do Estado e da nação: Xiconhoca, o inimigo do povo! (Jairoce, 2020: 100; Pereira 2021: 167).

Xichonhoca é composto por dois nomes, “Xico” e “Nhoca”. O primeiro, “Xico”, faz referência à alcunha pela qual foi conhecido um agente da PIDE-DGS, o Xico-feio. Segundo várias fontes o verdadeiro nome do Xico-feio era Francisco Langa, conhecido por Francisco ou Xico Malhanana (Francisco a Cobra), homem que trabalhava como guarda na cadeia da Machava, reservada para prisioneiros políticos (Jankowski, 2014: 133). “Nhoca”, em quase todos os dialetos do País, significa cobra, e referia-se à perceção popular sobre o carácter esguio, traiçoeiro e mortal da cobra quando quer atacar uma pessoa (REVISTA TEMPO, 1976: 48 citada por Jairoce, 2020: 100[2]).

Na visão de Pereira (2020: 97), a construção da figura do Xiconhoca surge num contexto da criação de uma “comunidade imaginada”, que para o caso moçambicano pressupõe uma forma de amnésia que cria um passado mítico atrelado a um processo intelectual de construção de um “inimigo interno” (o “Xiconhoca”), o seu contrário correspondente, o “Homem Novo[3]”. Quanto a sua nacionalidade (Mindoso, 2017: 180), constatou que o Xiconhoca era o moçambicano (negro) que, de uma forma geral, estivesse contra o processo “revolucionário” que o país estava experimentando, mas que também fosse considerado desviante da moral daquela sociedade.

As metamorfoses do Xiconhoca no período Pós-Colonial

A figura de Xiconhoca assume uma variedade de metamorfoses, como parasita, improdutivo, tribal, corrupto, prostituto, racista, espião, curtidor, bêbado (dado ao vinho), contra os direitos e emancipação da mulher e reacionário e/ou opositor político. Estas transformações estiveram sempre ligadas aos esforços da liderança da Frelimo de se implantar como o único marco moral e social do novo Estado pós-colonial.

Conquistada a independência em Moçambique, no processo da construção do Estado, o regime monopartidário concedeu ao partido Frelimo o papel e/ou a responsabilidade para que de forma exclusiva definisse o modelo da orientação de construção, em todas as dimensões (política, económica e sociocultural) do Estado. Com a exclusividade e centralidade do poder, o regime foi adquirindo um carácter crescentemente autoritário, exatamente pela incapacidade, por um lado, de transformar qualitativamente as relações socioeconómicas presentes e, por outro, de gerir as novas e diversificadas dinâmicas socioculturais que se lhe deparam (Menezes, 2015: 31).

Quanto as diferentes metamorfoses que Xichonhoca podia assumir, cada um deles representando determinado momento de classe e de comportamento social que a Frelimo deseja combater, sendo a destacar o (i) Xiconhoca Popular, se destaca pela irresponsabilidade e sabotagem; (ii) Xiconhoca Marginal, o corrupto do mundo urbano de cultura burguesa; e o (iii) Xiconhoca Burguês herdeiro do comportamento colonialista – o burocrata de fato e de gravata, que tende a complicar e atrasar a vida do povo.

O Xiconhoca popular, para além de estar sempre com a bebida no bolso, não é dado ao “trabalho coletivo”, leva uma vida parasitária, o que lhe conduz a situações de marginalidade e outros males sociais, como o desemprego. De acordo com Celestino Fernando (2019: 166-167), combateu-se o drama do desemprego, descrito por Samora Machel como uma herança colonial que devia ser eliminada –– cuja estratégia para tal foi a “Operação Produção”. O xiconhoca popular era corrupto, burocrata, açambarcador dos bens do povo, violador dos direitos da rapariga e explora a mulher e como objectivo final, e queria combater a Frelimo.

A dimensão étnica do Xiconhoca assume que no Moçambique recém‑independente o risco de fraturas de classe, étnico‑regionais ou raciais era enorme (Menezes 2015: 32). Neste contexto, as declarações sobre a natureza do inimigo contribuíam para delinear com precisão as fronteiras morais do Estado e do povo. A figura do Xiconhoca revela que a relação entre o povo – o coletivo dos ‘novos’ cidadãos – e a Frelimo, que o liderava, assentou no delinear de uma configuração de pertença e exclusão assertiva, procurando ultrapassar os problemas herdados do tempo colonial. Michael Cahen (1996: 23), salienta que o anti-tribalismo e o anti-racismo da Frelimo, em parte, serviram para debelar a prática da discriminação supostamente promovida pelo xiconhoca (o sublinhado é nosso).

O xiconhoca tribal exalta assim a cultura europeia como a única e verdadeira, e no contexto da luta contra a Europa colonial, o resgatar da cultura tradicional africana foi definida como um dos objetivos centrais da luta de libertação, tal como descreve Maria Paula Menezes (2015: 34). Apesar de vários elementos das culturas “tradicionais” serem vistos como obscurantistas e identificados como resquícios do “mundo tribal”, a exaltação da autêntica cultura, expressa nas danças, línguas e heróis nacionais era uma das apostas do Estado moçambicano.

No plano político, o Xiconhoca era usualmente descrito em duas dimensões, a primeira como agente da PIDE e/ou opositor político e a segunda dimensão como agente do inimigo. Como agentes “supostamente” associados à PIDE ou opositores políticos, foram vítimas figuras políticas[4] como André Matsangaissa[5], Urias Simango e Joana Simeão[6], tidos como traidores da causa revolucionária, reacionários e por essa razão, enviados aos campos de reeducação. Sobre Joana Simeão, Dulce Pereira (2021: 171), parte da premissa de que esta foi reconhecida pelo movimento de libertação como sendo uma reacionária, uma Xiconhoca, uma traidora, uma inimiga do projecto da independência e “amiga dos inimigos”.

Na sua segunda dimensão política, o Xiconhoca simbolizava, de acordo com Maria Paula Menezes (2015: 35), o inimigo interno. A presença dos regimes de minoria branca na então Rodésia do Sul e na África do Sul resultava numa profunda instabilidade política e permanente tensão militar na região. A colaboração com as provocações militares operadas pelos regimes vigentes nos países vizinhos com governos minoritários contra Moçambique eram uma das faces do Xiconhoca, radicalizando a situação política.

O Xiconhoca passou por várias metamorfoses no período da construção do Estado no Moçambique pós-colonial. Combater o Xiconhoca em todas as suas dimensões se tornou, no apogeu do fervor revolucionário, uma das formas mais eloquentes de cumprir, em ternos Constitucionais, com o Artigo 30 da então Constituição da República Popular de Moçambique, que estabelecia que “a participação activa na defesa do País e da Revolução é o direito e o dever mais alto de cada cidadão e cidadã da República Popular de Moçambique”.

 

A conjuntura actual: de Xiconhoca para “mão externa”

Numa triste sequência histórica de eventos, o Xiconhoca, que vivia no seio da sociedade no período monopartidário, passou na conjuntura actual multipartidária a viver e a florescer no seio da Frelimo, e cabe hoje à sociedade a batalha pela moralização social, económica da Frelimo[7].

Na atualidade, o termo Xiconhoca foi abandonado. Em entrevista ao semanário Savana, Jorge Rebelo, membro da Frelimo, reconheceu que “Hoje já não existe o xiconhoca, que ontem era a exceção hoje já é a regra”, no que concerne a corrupção, salienta que “aquilo que se considerava corrupção no passado hoje já não é, o que era comportamento negativo no passado hoje é normal” (Nemane, 2010: 2). É nessa vertente que o Xiconhoca virou uma qualidade institucional, e pode hoje ser professor, médico, político, governante, advogado, dirigente, polícia, chefe de repartição, comerciante, etc.… (Verdade, 2012[8]).

Sobre o novo cenário, Gonçalves (2009: 310), cita casos do uso do Estado para o enriquecimento pessoal, por parte daqueles que defendiam o projecto de uma sociedade livre de exploração do Homem pelo Homem. Estes são aqueles que, na educação escolar combateram o “xiconhoca” como sendo o principal inimigo do povo, algo que pode ser o reflexo da quebra do sentido que eles buscavam partilhar com as maiorias sociais, introduzindo uma desordem na escala de valores. Este facto, leva Severino Ngoenha a conceituar o período multipartidário como dólar-crático, uma vez que, nessa governação liderada pela Frelimo tudo se fez em função do dólar. A dolarcrácia consiste na busca do “poder, dinheiro, influência, acumulação” até a preço da instrumentalização das diferenças raciais, étnicas, religiosas e regionais (Ngoenha e Carvalho, 2022: 19), praticas típicas de um verdadeiro Xiconhoca. A corrupção invadiu a mentalidade dos servidores do Estado, e estes utilizam os valores ocidentais de democracia como um instrumento para realização de interesses económicos próprios, em detrimento dos interesses da população (Oliveira, 2019[9]).

 

Considerações Finais

A reversão e quasi-total metamorfose da Frelimo dum partido revolucionário para um partido que hoje abraça e acarinha aquilo que combatia é um problema com implicações políticas e legais graves. O conceito de Xiconhoca e a sua estratégia de implementação levaram à destituição económica e exclusão social de centenas de milhares de pessoas no país, cujos bens muitas vezes reverteram à favor dos mesmos que implementaram as medidas de combate ao Xiconhoca. E neste sentido, um simples “abandono” do conceito não devolve vidas destruídas, e nem repõe classes e estruturas sociais destruídas em nome do povo, mas recriadas a favor dos indivíduos que se diziam representar a revolução popular. Atualmente, o facto de existir a perceção de que a Frelimo emula as formas de vida do Xiconhoca, cria na sociedade a ideia de que tudo o que o antigo líder revolucionário queria era uma revolução que trocasse elites e classes governativas, para ele se instalar e reinar.

 

Lista de referências

Quembo, Carlos (2012). “O poder do poder: Operação Produção (1983) e a produção dos ‘improdutivos’ urbanos no Moçambique pós-colonial”. Cadernos de História de Moçambique, 1, UEM-FLCS-História.

CEPCB (2022). “Samora Moisés Machel: Curta Biografia”. Figuras Políticas. Maputo:Centro de Estudos de Paz, Conflitos e Bem-Estar (CEPCB). Disponível em: https://cepcb.org.mz/wp-content/uploads/2022/07/Biografia-Samora-Machel-FINAL-REVISTO-27-06-2022-1.pdf

Bolentim da República (1975) Constituição da República Popular de Moçambique. Disponível em: https://gazettes.africa/archive/mz/1975/mz-government-gazette-series-i-dated-1975-06-25-no-1.pdf

Fernando, Celestino (2019). “OPERAÇÃO PRODUÇÃO: a estratégia de inserir os chamados improdutivos, parasitas e inimigos da revolução no governo de transição em Moçambique entre 1975 a 1992”. Revista Espacialidades [online]. 2019.1, v. 15, n. 1, ISSN 1984-817X.

Jairoce, Jorge (2012). “O que é O XICONHOCA?”. Historiando: debates e ideias. Disponível em: http://jorgejairoce.blogspot.com/2012/08/o-que-e-o-xiconhoca-xiconhoca-so-cria.html acedido a 31 de Agosto de 2022.

___________ (2020). “Entre a história e literatura: a invenção dos heróis e mitos na construção do Estado-nação em Moçambique”. In Borralho, Henrique e Tatiana Silva (Orgs). Histórias e literaturas em países africanos de língua oficial portuguesa. São Luís: EDUEMA, Pitomba.

Jankowski (2014). “Quem é e quem foi o Xiconhoca? Vigilância sobre o protagonista”. In: Kraska-Szlenk, Iwona e Beata Wójtowicz (ed). Current research in African Studies. Warsaw: Dom Wydawniczy ELIPSA. pp133-148.

Mindoso, André (2017). Os Assimilados de Moçambique: Da situação colonial à experiência socialista. (Tese de Doutoramento em Sociologia). Curituba: Universidade Federal do Paraná.

Menezes¸ Maria Paula (2015). “Xiconhoca, o inimigo: Narrativas de violência sobre a construção da nação em Moçambique”. Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 106 | 2015, colocado online no dia 28 Abril 2015, criado a 30 Setembro 2016. Disponível em: https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/32797/1/Xiconhoca%2C%20o%20inimigo%20Narrativas%20de%20viol%C3%AAncia%20sobre%20a%20constru%C3%A7%C3%A3o%20da%20na%C3%A7%C3%A3o.pdf

Nemane, Armando (2010). “O xiconhoca já virou a regra”. Savana, edição de 18 de Junho de 2010. Disponível em: https://www.open.ac.uk/technology/mozambique/sites/www.open.ac.uk.technology.mozambique/files/pics/d135478.pdf

Ngoenha, Severino e Carlos Carvalho (2022). “A luta continua…”. Savana, Opnião, edição de 25 de Junho de 2022.

Oliveira, Lorena (2019). “Filosofia política moçambicana: por um novo projeto de democracia”. Interfaces da Filosofia Africana. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/39891/html acedido a 31 de Agosto de 2022.

Pereira, Dulce (2021). “Joana Semião, Homo Œconomicus E Homo Politicus: Urdindo Uma Epistemologia “Tolerante” Moçambicana”. exæquo, n.º 43, pp. 165-181. Disponível em: https://exaequo.apem-estudos.org/files/2021-07/11-dulce-maria-passades-pereira.pdf

Verdade(2012). Quem é o Xiconhoca da semana?. Disponível em: https://verdade.co.mz/xiconhoca/ acedido a 31 de Agosto de 2022.

 

[1]Primeiro presidente da República de Moçambique (1975), pode ler a biografia completa em: https://cepcb.org.mz/samora-moises-machel-curta-biografia-cepcb/

[2]TEMPO. Maputo, n. 303, 24 jul. 1976. 38 p. (Dados da publicação no link https://www.aluka.org/stable/10.5555/al.sff.document.ahmtem19760725?searchUri=

[3] O HOMEM NOVO: NOTAS CONCEPTUAIS E MEMÓRIAS SOBRE O PROJECTO IDENTITÁRIO DO MOÇAMBIQUE PÓS-INDEPENDENTE (1975 – 1990), https://cepcb.org.mz/2022/08/22/o-homem-novo-nota-informativa-no-3-agosto-de-2022/

[4]Pode consultar a biografia dessas figuras e o seu papel na construção do Estado em Moçambique em: https://cepcb.org.mz/category/fig-pol-moc/

[5]André MatadeMatsangaissa – Curta Biografia CEPCB, https://cepcb.org.mz/2022/06/26/andre-matade-matsangaissa-curta-biografia-cepcb/

[6]Joana Simeão – Curta Biografia CEPCB, https://cepcb.org.mz/2022/07/05/joana-simeao-curta-biografia-cepcb/

[7]No índice de percepção da corrupção 2021, Moçambique integrava a lista dos mais corruptos do mundo, ocupando a posição 147.

[8]Disponível em: https://verdade.co.mz/xiconhoca/ acedido a 31 de Agosto de 2022.

[9]Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/39891/html acedido a 31 de Agosto de 2022.